sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Um presente...

Você pode falar agora?

Meu primeiro celular pesava um quilo. Ok, menos. Pouco menos, mas era enorme. Tocava raramente, mas tinha um lado bom: era impossível perder aquilo na bolsa. Sinal em minha casa só pegava num cantinho da varanda e ainda assim se eu ficasse nas pontas dos pés absolutamente imóvel. Um só movimento e as enormes listras luminosas sumiam do visor e alô? Eu tinha câimbras se a conversa demorasse, pois não é fácil ficar petrificada como bailarina segurando com uma das mãos o pilar da varanda e com outra um tijolo falante ou mudo.
Quando a coisa tocava em público eu morria de vergonha. Era como se minha privacidade ficasse pelada entre as pessoas e eu não ia além de sussurrar “depois eu te ligo” e desligar constrangida, quase pedindo desculpas à platéia.
Isso não faz tanto tempo assim. Dez anos? Foi ontem. Na história da humanidade foi há um triz de segundo.
Agora tenho um celular pequeno que se perde entre batons, canetas, presilhas, aspirinas e papeizinhos na bolsa, serve como telefone, tira fotos, faz contas e me acorda. Tem dois anos e é tão antigo que tenho medo de colocar em cima da mesa num restaurante e os garçons retirarem como resto. Não recebe e mails, não tem GPS, não toca música. Talvez até toque, só que ainda não descobri. De GPS eu não preciso, pois sempre sei onde estou, mesmo quando não quero saber. E isso também não faz a menor diferença porque onde quer que eu esteja sou achada: o pedreiro me acha embaixo do chuveiro, o primo desempregado da amiga me acha no meio da novela, o amigo deprimido me acha na hora do almoço. Aliás, nessa de atender a coisa durante o almoço eu já me atrapalhei e atendi o garfo. Verdade.
Tudo bem, não estou normal, mas estou me tratando. Não por causa do garfo, pois isso não foi grave, só foi ridículo. Fiz outras coisas ridículas também: deixei gente plantada na minha frente para atender quem estava longe e esqueci qual era o assunto quando desliguei, fiz a fila do caixa esperar enquanto atendia quem na verdade devia esperar, disse que podia falar quando nem queria ouvir e até cair no mar de celular já caí. Afinal, celular e mar rimam, não rimam?
Mas o tratamento não envolve o ridículo. A coisa é mais séria. Preciso me livrar de um pesadelo recorrente chamado “obsolescência programada”. Não ter trocado meu celular nesses dois anos é sinal de que estou indo bem no tratamento. O pesadelo é assim: eu entro em uma loja e compro o mais moderno dos modernos dos celulares, bilhões de funções, top dos tops. Quando eu saio da loja ele já é muito antigo. Eu volto, compro um mais moderno e quando eu saio da loja ele está obsoleto. Volto, compro outro, vou comprando compulsivamente, outro, outro. Para sempre assim.
Todos vão ficando obsoletos cada vez mais depressa. Então começo a desconfiar que alguém está por trás disso, que alguém programa essa obsolescência. Que está tudo planejado, o último modelo não é o último modelo, é o penúltimo e estou sendo enganada. O pesadelo continua e vou juntando celulares, celulares, todos obsoletos, com suas baterias venenosas e obsoletas. Eu não sei o que fazer com eles, quero devolvê-los aos seus criadores e não há criadores. Tento muitos 0800, mas nenhum têm a opção “devolução”. Nenhum tem a opção “socorro!”.
Eles vão se amontoando, se juntam aos dos vizinhos, se esparramam pelas ruas, pelas cidades e pelo mundo inteiro. E todos tocam sem parar. Chamadas perdidas. Não dá mais tempo. Afundamos no lixo.
Acordo. Acho que dá para dormir mais um pouco.
Será?


Georgeta de O. Gonçalves
georgeta@uol.com.br



“Obsolescência programada é um processo desenvolvido nos Estados Unidos, antes da guerra, em razão da crise econômica. Teve-se que conceber produtos e equipamentos de curta duração, com constante reposição de peças etc, devido aos altos índices de desemprego. De forma que uma geladeira caía aos pedaços em 6 meses e era preciso comprar uma nova."

Alexandre Wollner: A referência do Design no Brasil
Por Márcia Denser e Marcia Marani
www.centrocultura.sp.gov.br

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